O Código e as Leis do Ciberespaço

Por Jaziel Lourenço da Silva Filho


Resumo

O presente artigo tem como objetivo investigar se as relações que ocorrem dentro do contexto do ciberespaço estão reguladas por um conjunto de leis, da forma como foi proposto por Lawrence Lessig, ou seja, extraídas de um código peculiar a esse ambiente. Como objetivos secundários, temos a apresentação das idéias inovadoras desse renomado autor para o cenário jurídico acadêmico e doutrinário brasileiro, bem como o posicionamento de sua teoria quando em comparação a outras teorias jurídicas que reputamos relevantes para a formação de um arcabouço teórico norteador das investigações sobre esse tema.


1. Introdução

Para atingirmos nossos objetivos, faremos, inicialmente, um delineamento conceitual para definir, de acordo com as pretensões desse trabalho, o significado adequado para os termos mais utilizados, tais como o ciberespaço, o código e a norma e o ordenamento jurídicos.

a) O que é o ciberespaço?

O termo ciberespaço foi criado pelo escritor norte-americano William Gibson1, e foi popularizado em seu livro de ficção científica Neuromancer, de 1984. Surgiu da necessidade de designar um nome para o espaço invisível no qual os homens, favorecidos pelos avanços tecnológicos e pelo desenvolvimento da realidade virtual, iriam conviver no futuro, na tentativa de tornar menos etéreo tal espaço.

Ainda hoje, é comum confundir-se a definição de ciberespaço com a própria idéia de Internet. Entretanto, mais recentemente, a noção de ciberespaço foi ampliada para englobar outras características que não estão restritas às observadas com relação à Internet. A mera idéia da disponibilização da informação distribuída pela rede de computadores cedeu espaço para abranger uma verdadeira plataforma de comunicação em nível global, como se pode perceber nos conceitos a seguir. Segundo Pierre Lèvy, o ciberespaço é definido como “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” (LÉVY, 1999, pág. 92). Para Suely Fragoso2:

Um fórum privilegiado para a abordagem dos possíveis reflexos e desdobramentos do desenvolvimento dos sistemas de realidade virtual e das redes digitais de comunicação sobre os estatutos do espaço e do tempo é o chamado 'ciberespaço' - aqui entendido como o conjunto de informações codificadas binariamente que transita em circuitos digitais e redes de transmissão.

Larry Lessig adverte que o ciberespaço não se confunde com a rede Internet, sendo aquele uma experiência mais rica, de imersão, na qual os participantes acreditam viver em uma comunidade, onde muitos deles chegam a confundir suas vidas com suas existências no ciberespaço. Do ponto de vista de Lessig, são diversas as formas de se implementar o ciberespaço. Por isso, Lessig preferiu relatar 4 (quatro) situações hipotéticas que ocorrem dentro do ciberespaço e que de alguma forma possuem implicações no que os juristas costumaram chamar de mundo jurídico3 , na tentativa de identificar como o ciberespaço faz parte do cotidiano e nos dias atuais tornou-se imprescindível para a sociedade contemporânea.

Parece-nos que apesar da abrangência com que o termo ciberespaço pode ser utilizado, a palavra-chave que auxilia na percepção de seu significado é “convivência”. Assim, acreditamos que o significado do termo ciberespaço se aproxima cada vez mais daquele idealizado pelo seu criador nos livros de ficção científica. O ciberespaço, para os propósitos desse estudo, deve então ser encarado não apenas como uma plataforma de comunicação em nível mundial, mas como verdadeiro espaço de convivência social transcultural.

b) O que é o código?

Código é uma palavra ambígua, e precisar seu significado é importante para os propósitos desse estudo. A ambigüidade desse termo permite pelo menos duas acepções para a palavra: código em sentido histórico e código em sentido técnico. Iremos definir prioritariamente a acepção histórica.

Foi no antigo Império Romano que surgiram as primeiras compilações de texto em forma de livro, em substituição aos antigos pergaminhos utilizados até então. A esses livros, os Romanos chamavam de Codex (livro ou pedaço de madeira, em Latim)4. Dentre os diversos Codices, ganharam destaque por sua relevância para a ciência do Direito as compilações ordenadas pelo Imperador Flavius Petrus Sabbatius Iustinianus5, o Justiniano I, que ficaram conhecidas como Corpus Juris Civilis ou simplesmente Código de Justiniano. Essa compilação continha diversas regras religiosas (leis contra heresias e paganismo), os Digestos6 (textos legais que tinham força de lei), as Instituições (uma espécie de manual para juristas, que também tinha força de lei) e as Novellae Constitutiones7.

Após a Revolução Francesa, a sociedade burguesa precisava dispor de regras jurídicas que estivessem condizentes com a nova realidade social. Foi então que entrou em vigor outra famosa compilação de leis que ficou conhecida como Código de Napoleão, por ter sido implantada pelo próprio Napoleão Bonaparte. Inaugurava-se a Era das Codificações, assim conhecida pelos juristas por representar o anseio da sociedade civil européia pelo registro em escrito das regras e normas vigentes à época, na tentativa de frear os abusos resultantes da concentração de poder dos monarcas no período absolutista.

Assim, ao longo do tempo, a palavra Código passou a significar uma compilação de leis vigentes, ou simplesmente, a lei que regula determinada sociedade ou parcela significativa dela. Denominaremos essa acepção da palavra código como histórica.

A acepção técnica remonta às antigas teorias da linguagem e originalmente significava toda e qualquer forma de comunicação escrita. Nessa acepção, o alfabeto indo-arábico que utilizamos nada mais é do que um código. No entanto, a ciência da computação em sua evolução deu um significado diferenciado para a palavra código. Na tentativa de padronizar o funcionamento dos circuitos, criou-se uma notação que ficou conhecida como código binário. Essa notação é composta dos símbolos 0 (zero) e 1 (um) e convencionou-se que quando o dispositivo digital estivesse desligado (ou o circuito lógico estivesse aberto) seria representado pelo valor zero e quando o dispositivo digital estivesse ligado (ou o circuito lógico estivesse fechado) seria representado pelo valor um. Estava assim eleita uma forma de comunicação entre o homem e as máquinas, que ficou conhecida como linguagem de máquina.

Com o tempo, os cientistas desenvolveram formas mais eficazes de comunicar comandos às máquinas. Criaram-se diversas linguagens diferentes, nas quais o operador utilizava-se de mnemônicos para programar tarefas a serem executadas pelos computadores. Esses textos, escritos em linguagem de programação, eram compilados por dispositivos digitais pré-programados que os traduziam em linguagem de máquina. A esses textos convencionou-se chamar de código-fonte (source code, em inglês). Assim, desenvolveram-se vários algoritmos para solucionar os mais diversos problemas, desde questões matemáticas até tarefas cotidianas e repetitivas. É através da representação dos diversos algoritmos em código-fonte que o homem consegue, por exemplo, criar os programas de computadores e dispositivos digitais (software, em inglês).

No entanto, o termo código em sua acepção técnica, que é a mais utilizada por Larry Lessig, não se restringe apenas ao software dos dispositivos digitais. Por diversas vezes Lessig faz menção à arquitetura do ciberespaço. O termo arquitetura, também técnico, se refere à forma como um sistema, composto por programas (software) e dispositivos (hardware), se organiza ou se estrutura. Geralmente essa arquitetura pode ser alterada, configurada ou até mesmo esquematizada através de diagramas, mas essas possibilidades variam de acordo com a complexidade do sistema ao qual se refere.

O termo código, na acepção técnica que usaremos deste ponto em diante, está relacionado à arquitetura do sistema, que no caso desse estudo é o ciberespaço, e significa a estrutura (estática) do sistema (software e hardware), e não o seu comportamento funcional (dinâmico).

c) Norma e ordenamento jurídico

Qualquer investigação científica que pretende identificar elementos normativos em determinado sistema precisará, anteriormente, definir o significado de norma, contextualizar essa definição e estudar como essas normas se relacionam. Com essa finalidade, adotamos os ensinamentos do renomado jurista italiano Norberto Bobbio.

Bobbio, observando que “as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si” (p.19), modificou o conceito de Direito para incluir em sua análise, pelo menos, duas perspectivas: o da norma jurídica em si considerada e o do ordenamento jurídico, justamente esse contexto ao qual se referiu. Diante da impossibilidade de definir o Direito do ponto de vista da norma jurídica, considerada isoladamente, enxergou a necessidade de considerar o “modo pelo qual uma determinada norma se torna eficaz a partir de uma complexa organização que determina a natureza e a entidade das sanções, as pessoas que devam exercê-las e a sua execução” (p. 22).

Entretanto, nem toda norma é jurídica. O que faz com que uma norma seja então considerada uma norma jurídica? Bobbio definiu norma jurídica “como aquela norma cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada” (p. 27). Ele mesmo explica as implicações dessa tese:

Se sanção jurídica é só a institucionalizada, isso significa que, para que haja Direito, é necessário que haja, grande ou pequena, uma organização, isto é, um completo sistema normativo. Definir o Direito através da noção de sanção organizada significa procurar o caráter distintivo do Direito não em um elemento da norma mas em um complexo orgânico de normas. (p. 27)

E mais adiante:

Se aceitarmos essa tese, o problema da definição do Direito se torna um problema de definição de um ordenamento normativo e, consequentemente, diferenciação entre esse tipo de ordenamento normativo e um outro, não o de definição de um tipo de normas. (p. 28)

Assim, de acordo com Bobbio, o ordenamento jurídico (como todo sistema normativo) é um conjunto de normas jurídicas, que obedece a seguinte condição: na constituição de um ordenamento devem concorrer mais normas (pelo menos duas), e não deve haver ordenamento composto de uma norma só (p. 31). Além disso, um ordenamento jurídico deve possuir as seguintes características, que são apresentadas por Bobbio na forma de problemas (p. 34 e 35):

  • Unidade : consiste em saber se as normas que compõem o ordenamento jurídico constituem uma unidade e de que modo a constituem. São pertinentes a esse problema a discussão sobre a pluralidade das fontes normativas, e, como problema fundamental, o problema da hierarquia das normas;
  • Coerência: consiste em saber se o ordenamento jurídico constitui um sistema, ou seja, se as normas jurídicas que o compõem entram em conflito, o próprio ordenamento jurídico deve fornecer meios de solução desses conflitos. Esses métodos de solução propostos pelo ordenamento jurídico são problemas típicos de antinomias jurídicas;
  • Completude: consiste em saber se o ordenamento jurídico pretende ser completo, ou seja, possui métodos de integração a ponto de evitar o surgimento de lacunas.

Como bem ponderou Bobbio, essas características dos ordenamentos jurídicos consistem em problemas jurídicos que são constantemente discutidos pela teoria do Direito. Tomemos como exemplo o ordenamento jurídico brasileiro: composto de inúmeras normas jurídicas que extraem seus fundamentos de validade e eficácia na Constituição Federal, que é a norma fundamental, o ordenamento jurídico brasileiro é um complexo sistema que não está livre de incoerências e muito menos de lacunas. Tanto o é que o próprio ordenamento prevê mecanismos para minimizar as incoerências e incompletudes, como são, respectivamente, as técnicas de ponderação de princípios adotadas pelo STF nas situações que envolvem conflitos de princípios constitucionais e o procedimento do Mandado de Injunção, previsto pela CF em seu Artigo 5°, inciso LXXI. Mas até que ponto esses mecanismos, embora válidos, são eficientes? Até mesmo a unidade do ordenamento jurídico brasileiro pode ser questionada, quando resta desconfigurada a hierarquia das normas. Veremos essa questão mais detalhadamente quando apresentarmos a teoria das Constituições Civis de Gunter Teubner, mais adiante.

Por ora, resta observar que mesmo ordenamentos jurídicos reconhecidos mundialmente por sua tradição, apesar de sua complexidade, como é o caso do brasileiro, podem ter suas características questionadas e, por vezes, inobservadas, sem que isso os descaracterize como ordenamentos jurídicos genuínos.

Pois bem, essas observações nos aproximam da conclusão de que o ciberespaço pode constituir um ordenamento jurídico autônomo? Deixaremos para responder esse questionamento após apresentar a Teoria de Lessig e outras teorias relevantes.

2. A teoria de Lessig

Podemos considerar a teoria de Lessig inovadora no momento em que atribui a um elemento intrínseco ao ciberespaço a mesma força reguladora que possui uma lei, ou seja, para Lessig, o código do ciberespaço, isto é, a sua arquitetura, é uma lei, ou seja, uma compilação de regras de condutas sociais aceitas pelos participantes. Assim, no que diz respeito ao ciberespaço, a palavra código em sua acepção histórica coincide plenamente com a acepção técnica, fazendo desaparecer essa ambiguidade.

Lessig defende o reconhecimento de um novo agente regulador da sociedade. Para ele, no espaço real nós reconhecemos as leis como agentes reguladores da sociedade, através das constituições, estatutos, e outros códigos jurídicos (códigos na acepção histórica). No ciberespaço devemos entender como um “código” diferente regula a sociedade – como o software e o hardware (ou seja, o “código” do ciberespaço, na acepção técnica) formam e regulam, ao mesmo tempo, o ciberespaço (p. 5).

Parte dessa idéia se fundamenta na relativização do conceito de Constituição como norma fundamental do ordenamento jurídico. Para Lessig, o termo Constituição não significa apenas um texto jurídico, mas sim um estilo de vida, uma arquitetura que estrutura e restringe os poderes sociais e jurídicos, com a finalidade de proteger valores fundamentais. Segundo ele, Constituições nesse sentido são construídas, não achadas (p.4).

Dessa forma, Lessig estabelece que o que quer que seja que defina a arquitetura do ciberespaço (o governo ou o mercado, por exemplo) acaba por criar uma norma fundamental, uma constituição que submete todos os outros envolvidos ou participantes do ciberespaço. No entanto, Lessig infelizmente não enfrentou o tema da legitimação (ou legitimidade) do poder originário na criação dessa norma fundamental.

O outro fundamento para o reconhecimento do código como agente regulador do ciberespaço Lessig extraiu da observação dos fenômenos sociais. Enumerou, como mencionamos alhures, quatro situações que, embora hipotéticas, são bastante corriqueiras. A partir dessas quatro situações, Lessig desenvolveu quatro temas, sendo cada um referente a uma dessas situações.

No primeiro deles (capítulos 3, 4 e 5), tratou da questão da Regulabilidade, que é a capacidade que um governo possui de regular (controlar) os comportamentos (ou condutas sociais) de seus cidadãos de maneira autônoma. Como exemplo de instrumento de regulação para um ordenamento jurídico comum, podemos citar a sanção penal e a coerção estatal (poder de polícia, por exemplo). Dentro desse tema, Lessig combate o mito de que o ciberespaço não pode ser regulado (capítulo 3), além de explicar as recentes transformações pelas quais tem passado o ciberespaço, que passou de uma arquitetura inicialmente anárquica para uma arquitetura de controle (capítulo 4) e, ao final, mapear o momento oportuno para que o governo promova a regulação do ciberespaço (capítulo 5).

O segundo tema expandido por Lessig é o da Regulação através do Código. Para ele, podemos resumir esse tema da seguinte forma:

There is regulation of behavior on the Internet and in cyberspace, but that regulation is imposed primarily through code. The differences in the regulations effected through code distinguish different parts of the Internet and cyberspace. In some places, life is fairly free; in other places, it is more controlled. And the difference between these spaces is simply a difference in the architectures of control—that is, a difference in code. (p. 24)

Assim Lessig define a Regulabilidade como uma função do código, ou seja da arquitetura do sistema. Dessa forma, algumas arquiteturas do ciberespaço serão mais "reguláveis" do que outras, ou seja, possibilitarão melhor controle. Cientes desse fato, as entidades que desejarem favorecer um maior controle do ciberespaço (como o governo ou o mercado) irão também favorer o desenvolvimento de arquiteturas que terão a regulabilidade como prioridade.

Após definir substancialmente o ciberespaço, distinguindo-o mais uma vez da Internet através de numerosos exemplos (cap. 6), Lessig estabelece o que pode ou não pode ser regulado. Visivelmente preocupado com o aumento de poder do Estado, Lessig propõe limites ao poder regulador do Estado baseado nas liberdades individuais essenciais e outras restrições, como o mercado (cap. 7). No capítulo seguinte (cap. 8), Lessig contrapõe as arquiteturas que se baseiam em software livre das arquiteturas proprietárias e suas implicações em termos de regulabilidade.

O terceiro tema do livro Lessig dedica ao estudo das ambiguidades resultantes do aumento na regulabilidade do comportamento no ciberespaço e da mudança na forma de regular o comportamento no ciberespaço (através do código), em particular os impactos que essas alterações irão trazer para três áreas da vida social e política: a propriedade intelectual (cap. 10); a privacidade e intimidade (cap. 11); e a liberdade de expressão (cap. 12). São exemplos das ambiguidades levantadas pelo autor: quanto mais controle, menos liberdade; quanto mais segurança, maior a exposição da intimidade. Esse terceiro tema expressa a preocupação de Lessig com a problemática das antinomias jurídicas. Em nossa opinião, consiste na tentativa do autor de tornar o ciberespaço, enquanto ordenamento jurídico, mais coerente, o que fica visível na proposição de um tradutor (cap. 9).

No quarto e último tema de que trata Lessig, ele está preocupado com as relações entre os ordenamentos jurídicos coexistentes, mais particularmente na questão da soberania (cap. 14) e na forma como a arquitetura da Internet é pressionada pelos conflitos de soberania entre os vários ordenamentos jurídicos existentes (cap. 15). As considerações são pertinentes e merecem um estudo mais aprofundado, que leve em consideração o que também escreveu sobre o tema Norberto Bobbio, em seu capítulo 5 do livro Teoria do Ordenamento Jurídico.

Os capítulos finais de seu livro Lessig dedica a suas conclusões. Não iremos nos ater a elas por considerar que os principais aspectos da inovação de seus pensamentos em termos da ciência jurídica estão contidos nos assuntos que já apresentamos, de forma sucinta, e que podem ser sintetizados através da seguinte tese:

A mão invisível do ciberespaço, impulsionada pelo governo e pelo comércio, está construindo uma arquitetura que é completamente distinta da proposta inicialmente, no seu surgimento, e que irá ser perfeitamente controlada e irá tornar uma regulação altamente eficiente possível. O desafio será assegurar que as liberdades essenciais serão preservadas nesse ambiente perfeitamente controlado. (p. 4)

Dessa forma, reputamos suficiente para os propósitos desse estudo a apresentação da teoria de Lawrence Lessig. No próximo tópico apresentaremos outras duas teorias que guardam pertinência com a teoria apresentada por Lessig e que podem ser combinadas para formular uma teoria mais geral.

3. Outras teorias

Nesta seção apresentamos duas teorias que somadas à teoria proposta por Lessig irão nos conduzir às conclusões que formularemos a seguir. O que essas teorias tem em comum é que elas posicionam (ou pelo menos admitem) a força criadora do Direito em outras entidades que não o Estado. Essa característica é marcante, pois em um ordenamento jurídico como o nosso, de tradição positivista, a maior parte dos juristas não admite a exclusão do monopólio do Estado como fonte criadora do Direito.

A primeira teoria é de autoria de Ronald Dworkin, que foi inicialmente descrita através da publicação do livro Taking Rights Seriously, em 1977, e trouxe inúmeras críticas à doutrina positivista majoritária, tendo sido, posteriormente, aprimorada com a publicação do livro Law’s Empire, em 1986.

Dworkin identificou (1999; p. 8) um fenômeno que denominou de divergência teórica sobre o direito, que ocorre quando os juristas discordam sobre os fundamentos do direito. Suas veementes críticas repousam na observação de que a maioria dos juristas (sobretudo aqueles que seguem a doutrina positivista) nega a problemática da divergência teórica, oferecendo como solução não uma resposta, mas apenas uma evasiva. Para Dworkin, esses juristas vêem o Direito como simples questão de fato. Em suas palavras, esse ponto de vista pode ser sucintamente expresso da seguinte forma:

O direito nada mais é que aquilo que as instituições jurídicas, como as legislaturas, as câmaras municipais e os tribunais, decidiram no passado. (…) Portanto, as questões relativas ao direito sempre podem ser respondidas mediante o exame dos arquivos que guardam os registros das decisões institucionais. (…) Em outras palavras, o direito existe como simples fato, e o que o direito é não depende, de modo algum, daquilo que ele deveria ser. (Dworkin, 1999, p. 10)

Segundo Dworkin, esse ponto de vista camufla problemas de natureza lógica, sobretudo quando ficam evidentes as lacunas do direito ou então diante dos chamados casos difíceis8. Dworkin insiste na idéia de que “os problemas de teoria do direito são, no fundo, problemas relativos a princípios morais e não a estratégias ou fatos jurídicos” (2007, p. 12). Entretanto, sua concepção de direito não nega o fundamento social do ordenamento jurídico:

O direito é, sem dúvida, um fenômeno social. Mas sua complexidade, função e conseqüências dependem de uma característica especial de sua estrutura. Ao contrário de muitos outros fenômenos sociais, a prática do direito é argumentativa. Todos os envolvidos nessa prática compreendem que aquilo que ela permite ou exige depende da verdade de certas proposições que só adquirem sentido através e no âmbito dela mesma; a prática consiste, em grande parte, em mobilizar e discutir essas proposições. (Dworkin, 1999, p. 17)

Dworkin então define o Direito como um conceito interpretativo (1999, p. 109), abstendo-se de produzir uma teoria semântica para alcançar o verdadeiro significado do Direito ou de estabelecer critérios comuns ou regras fundamentais (de validade) para “colocar rótulos jurídicos nos fatos” (1999, p. 112). Dworkin estabelece que o Direito só se desenvolve em determinada comunidade se houver, dentre os membros daquela comunidade, um suficiente consenso inicial sobre quais práticas são (ou não) jurídicas. A esse consenso, chamou de acordo pré-interpretativo, e o definiu como sendo contingente e local (1999, p. 113). Para ele:

Na verdade, não temos dificuldade em identificar coletivamente as práticas tidas como matérias jurídicas em nossa própria cultura. Temos legislaturas, tribunais, agências e organismos administrativos, e as decisões tomadas por essas instituições são reportadas sob forma de normas. Nos Estados Unidos, temos também a Constituição. Ao aderir ao exercício do direito, cada advogado já encontra essa estrutura estabelecida e compartilha o entendimento de que o conjunto dessas instituições forma nosso sistema jurídico. Seria um erro – outra prolongada influência produzida pelo aguilhão semântico – pensar que identificamos essas instituições por meio de uma definição comum, e satisfatória do ponto de vista intelectual, daquilo que necessariamente configura um sistema jurídico e de quais instituições o constituem necessariamente. Nossa cultura nos apresenta as instituições jurídicas e a idéia de que elas formam um sistema. A questão de quais características próprias as fazem combinar-se para formar um sistema jurídico bem definido faz parte do problema interpretativo. Não é um dado da estrutura pré-interpretativa, mas parte do processo polêmico e incerto de atribuir significado ao que encontramos. (Dworkin, 1999, p.113-114)

Assim, Dworkin posiciona a interpretação como fenômeno chave do processo de definição da fronteira do mundo jurídico. Além disso, posiciona o consenso como um fundamento do ordenamento jurídico. Essa construção fica ainda mais evidente quando Dworkin, ao enunciar sua tese dos direitos (2007, p. 132), estabeleceu como restrição à concretização de direitos a obrigação dos juízes de se apoiarem em direitos institucionais9 (2007, p. 158), que são o gênero dos quais os direitos jurídicos são espécie, para a prolação de decisões judiciais geradas por princípios, e não por políticas. Vejamos:

No xadrez, o fundamento geral dos direitos institucionais deve ser o consentimento ou o entendimento tácito das partes. Ao participarem de um torneio de xadrez, elas consentem com a aplicação de certas regras, e não de outras, e é difícil imaginar qualquer outro fundamento geral para a suposição de que elas tenham quaisquer direitos institucionais. Mas se isso é assim e se a decisão de um caso difícil é uma decisão sobre que direitos as partes efetivamente têm, os argumentos para a decisão devem aplicar essa fundamentação geral ao caso difícil.
Poderíamos dizer que o caso difícil coloca uma questão de teoria política. A questão é: o que é razoável (fair, em inglês) supor que os jogadores fazem quando consentem com a regra da aplicação da penalidade? O conceito da natureza do jogo é um artifício conceitual que serve para articular essa questão. É um conceito contestado10, que internaliza a justificação geral da instituição de maneira a torná-la utilizável para a formulação de distinções na esfera da própria instituição. Tal conceito supõe que um jogador concorda não apenas com um conjunto de regras, mas com um empreendimento que, podemos dizer, tem um caráter próprio. Assim, quando se coloca a questão – com o que ele consentiu ao dar seu consentimento? – a resposta pode examinar o empreendimento como um todo, e não apenas as regras. (Dworkin, 2007, p. 163-164)

Em seguida, Dworkin (1999, p. 117-118) elaborou três concepções diferentes de Direito para responder a três questionamentos: i) qual é a justificativa para o suposto elo entre o Direito e a coerção governamental? ii) Faz algum sentido exigir que a força pública (governamental) seja usada somente em conformidade com os direitos e responsabilidades que “decorrem” de decisões políticas anteriores (lei, por exemplo)? Se tal sentido existe, qual é ele? iii) Que sentido do termo “decorrer” é mais apropriado? Qual é a noção de coerência com decisões precedentes?

Às concepções que pretendem responder tais questionamentos, de maneira diferenciada umas em relação às outras, chamou de convencionalismo, pragmatismo jurídico e direito como integridade. Por razões atreladas aos objetivos desse estudo, deixaremos de desenvolver pormenorizadamente cada uma dessas concepções, nos restringindo a mencioná-las e remetendo o leitor ao estudo dos capítulos IV, V, VI e VII do livro Law’s Empire (título em português: O Império do Direito), onde Dworkin enuncia e detalha suas três concepções de direito.

Consideramos suficiente, para os propósitos deste estudo, a exposição até aqui realizada da teoria de Dworkin.

A segunda teoria que iremos mencionar é a doutrina das Constituições Civis de Günter Teubner. Teubner, como bem observou Marcelo Neves (2008, p. 260-261), “exige que a estrutura social também seja levada em consideração no âmbito de uma teoria do direito pós-desconstrutivista”. Neves também observou que “à procura dos fatores socioestruturais de desenvolvimento, que levam à “desconstrução da hierarquia do direito” no Estado Democrático de Direito, Teubner põe o conceito de globalização (…) em primeiro plano: “O great deconstructor não se chama Jacques Derrida nem Niklas Luhmann, chama-se ‘globalização’”. Parece-nos que Neves não endossa essa concepção de Teubner. Entretanto, o diagnóstico de Neves em relação a ela está perfeito e merece ser reproduzido:

A teoria do direito é desafiada, então, a incluir em sua semântica e trazer para o centro de suas discussões a questão das ordens jurídicas globais e plurais, estruturalmente acopladas aos respectivos subsistemas da sociedade mundial.
Teubner proporciona o quadro de uma sociedade mundial que, sob o impulso da chamada globalização, conduz ao desenvolvimento de rule of law e due process of law em diversas esferas sociais diferenciadas. Isso significa dizer que os procedimentos do Estado de Direito deixam de pertencer especificamente ao Estado Nacional e recebem novos estímulos no âmbito das global villages enquanto sistemas autônomos. Nesse processo, diminui o significado da Constituição como acoplamento estrutural entre política e direito. (Neves, 2008, p. 261-262)

Teubner baseia sua teoria na observação dos fenômenos sociais, e encontra seu fundamento na doutrina de Niklas Luhman (teoria dos sistemas):

Não só a economia é hoje em dia um sistema autônomo no plano global – também a ciência, a cultura, a técnica, o sistema de saúde, a previdência social, o transporte, o sistema militar, a mídia e o turismo se auto-reproduzem atualmente como “sistemas mundiais” (…) e fazem, dessa maneira, concorrência à política internacional dos Estados nacionais, com sucesso. E, enquanto o processo político atingiu apenas uma proto-globalidade nas relações internacionais, ou seja, nada além de relações inter-sistêmicas entre unidades nacionais com elementos transnacionais bastante frágeis, os outros subsistemas sociais já começaram a formar uma autêntica sociedade global ou, melhor, uma multiplicidade fragmentada de diferentes sociedades globais.
(…)
Portanto, teorias políticas de direito serão de pouca utilidade para a compreensão da globalização legal. Isto é verdade para as teorias positivistas que enfatizam a unidade do Estado e do direito, bem como para as teorias críticas que tendem a dissolver o direito no poder político. Fixando o olhar obsessivamente nas lutas de poder da arena política global da política internacional, onde a globalização legal tem lugar apenas parcialmente, na melhor das hipóteses, ignoram-se os processos dinâmicos em outras arenas, onde os fenômenos da globalização legal estão surgindo, em um relativo isolamento da política. O ponto crucial é que “o acoplamento estrutural entre o direito e a política através das Constituições não possui correspondência no nível da sociedade mundial.”11 (Teubner, 1996, p. 3-4)

Os vários exemplos que Teubner (1997, p. 770-771) suscitou de legislações criadas sem a interveniência do Estado, serviram para evidenciar um paradoxo existente nos fundamentos do sistema jurídico. A observação desse paradoxo, juntamente com a análise das condições históricas (contexto), seria suficiente para desconstruir a hierarquia do sistema jurídico. Sua opinião crítica aponta para as teorias jurídicas do desconstrutivismo, encabeçadas por Jacques Derrida, indicando que tais teorias falharam justamente por não terem especificado sob que condições históricas a desconstrução realmente teria efeitos sociais nas dissoluções de suas identidades e revelações de seus paradoxos e sob que condições não haveria tais efeitos. Para Teubner (1997, p. 770), “o ponto cego das teorias jurídicas pós-modernas é uma notável ausência de autológica12 que as faz falhar ao analisar as condições históricas da sua própria crítica”. Em suas palavras:

Se tivesse empreendido tais análises autológicas, o desconstrutivismo teria reconhecido que é uma conseqüência da evolução histórica crucial na sociedade e cultura tornar esses paradoxos desconcertantes e paralisantes visíveis. Essa evolução cria as condições estruturais para que, em certo momento histórico, os fundamentos do direito sejam repentinamente vistos como paradoxais, entre outros, mas não exclusivamente pelos desconstrutivistas. Os paradoxos do direito poderiam ter sido revelados em qualquer momento na história do direito – e na verdade eles foram; contudo, eles foram bem camuflados quando a sociedade acolheu as relações hierárquicas. Eles vêm à tona apenas sobre certas configurações históricas, quando as formas de camuflá-los perdem sua plausibilidade na teia de outras diferenciações, embora essa teia esteja sendo dilacerada, fazendo o paradoxo dos fundamentos reaparecer. (Teubner, 1997, p. 771)

Mais adiante, Teubner esquece-se momentaneamente das duras críticas que vinha traçando às teorias desconstrutivistas e volta sua atenção ao exemplo em que vinha trabalhando (a lex mercatoria). Assim, ele teoriza:

No nosso exemplo da legislação sem a Soberania, durante séculos o surpreendente paradoxo da auto-validação do contrato e sociedade tem permanecido em uma surpreendente decadência. Tal fenômeno ficou conhecido como charada jurisprudencial, mas ele permanece oculto. Para ser exato, os fundamentos não-contratuais do contrato e os fundamentos não-sociais da sociedade foram politizados por Hobbes, historicizados por Savigny e socializados por Durkheim. Mas esses problemas não foram realmente resolvidos, antes eles os mativeram em suspensão e ocultos. Os motivos para este ocultamento são históricos. O Estado-nação, sua Constituição, e suas leis previram a diferenciação segura entre legislação e jurisdição, que era aparentemente capaz de absorver todas as “formas privadas de legislar”. Eles substituíram a auto-validação contratual e social pelas suas heterovalidações. The King’s Two Bodies foram convenientemente nutridos para ocultar atrás deles os dois grandes paradoxos: o paradoxo da auto-validação não oficial do direito; o paradoxo dos fundamentos do próprio direito oficial. Assim, o surgimento dos paradoxos do direito não se deu com as descobertas ingênuas da jurisprudência pós-moderna, cujas técnicas de desconstrução revelaram aporias do direito, antinomias e paradoxos. Antes, a cruel realidade social tornou visíveis os paradoxos do direito – neste caso: a globalização fragmentada. Esta é uma diferenciação entre uma economia altamente globalizada e uma política fracamente globalizada que força pelo surgimento de uma legislação global que não possui nenhuma Constituição política ou jurídica, e nem uma hierarquia de leis politicamente organizada, que poderia manter o paradoxo contratual oculto. A hierarquia das leis não sucumbiu perante o ataque das teorias jurídicas, mas eficazmente sucumbiu quando foi desconstruída pelas próprias práticas jurídicas. (Teubner, 1997, p. 771-772)

Vamos explorar um pouco mais a doutrina de Teubner, adotando sempre como centro de gravidade os exemplos que ele reuniu de legislações globais sem a interveniência do Estado:

Voltando ao nosso exemplo, o direito da governança privada na sociedade global, onde se encontra o novo esconderijo do paradoxo dos fundamentos do direito, uma vez que a proteção da hierarquia das leis foi desconstruída? Se nós assumirmos o risco de forjar desdobramentos desconstrutíveis do paradoxo do direito, nós devemos procurar por ele no sentido de um direito “policontextural” que não seria hierárquico, mas sim heterárquico, um direito com múltiplas fontes, um direito sem uma perspectiva unificadora, um direito que é produzido por diferentes discursos mutuamente exclusivos na sociedade? O direito permanece o mesmo, mas aparenta ser diferente dependendo dos diversos discursos sociais que o “produzem”. O mesmo é diferente. A diferenciação hierárquica tradicional do direito em legislação e jurisdição seria substituída por uma multiplicidade de ordens jurídicas heterárquicas acopladas estruturalmente a outros discursos. Estes acoplamentos estariam conectados uns aos outros de uma forma auto-referencial circular. A legislação política perderia o seu lugar privilegiado e se tornaria apenas uma forma periférica de se “fazer” o direito entre outras formas plurais de produção do direito. A miscelânea do direito das minorias étnicas e religiosas, normas de padronização, regramentos profissionais, contratos, regras intra e interorganizacionais, (…) seriam igualmente formas válidas de produção do direito. Assim, o paradoxo dos fundamentos do direito previamente escondido na grande ficção da Soberania Política estaria agora dissolvido em uma multiplicidade de paradoxos de auto-validação. The One King has Two, Three, Four, …, Many Bodies! (Teubner, 1997, p. 777)

A doutrina de Teubner é bem construída através da observação fenomenológica, da vinculação aos pressupostos teóricos da teoria dos sistemas e do rigor científico, resultando em um modelo jurídico adequado para a finalidade a que se propõe.

Reputamos como suficiente a explanação da doutrina de Teubner até aqui apresentada para as finalidades a que se propõe esse estudo. Vamos às nossas conclusões.

4. Conclusões

O principal objetivo desse estudo é investigar se as relações que ocorrem dentro do contexto do ciberespaço estão reguladas por um conjunto de leis, em um primeiro momento, e se é possível concordar com a tese de Lawrence Lessig, ou seja, se esse conjunto de leis pode ser extraído do código inerente a esse ambiente (ciberespaço).

Com relação à primeira parte do nosso objetivo, temos, em uma análise preliminar, que a teoria proposta por Lessig não é suficiente, por si só, para se chegar a essa conclusão. Entretanto, vimos que o que define uma norma jurídica é a garantia de sua execução por uma sanção externa e institucionalizada. Bobbio não exige que a execução da norma seja garantida pelo Estado. Ele não especificou, em nenhum momento, que tipos de instituições estariam autorizadas (leia-se: teriam legitimidade) para oferecer sanção e assim garantir a execução das normas. Mas por diversas vezes faz menção à família como sendo uma ordem normativa. Parece-nos que suas idéias estão em conformidade com a teoria de Ronald Dworkin, quando da definição do que ele denominou direitos institucionais. Entretanto, segundo Dworkin, exige-se que os direitos institucionais sejam reconhecidos por uma decisão fundamentada em princípios (axiológica, ou seja, valorativa), e não em políticas, para que os direitos institucionais sejam convertidos em direitos jurídicos. Ora, Dworkin também não exigiu que essa decisão seja prolatada pelo Estado. Essa questão se encerra com mais veemência quando examinamos a teoria proposta por Teubner. Alterando o conceito de Constituição, da mesma forma como fez Lessig, Teubner concede aos contratos celebrados entre os "organizadores" do ciberespaço e os seus participantes o status de norma fundamental, mesmo que tais contratos sejam tácitos.

Outra questão se levanta quando examinamos os requisitos levantados por Bobbio para caracterizar uma ordem normativa como sendo ordenamento jurídico. Será que o ciberespaço consiste mesmo em uma ordem jurídica? Ou não passa de uma ordem normativa? Do ponto de vista pragmático, não há diferença entre esses dois conceitos, mas pelo amor ao debate enfrentaremos mais esse questionamento. Teubner, ao expor sua teoria, utilizou-se do conceito de globalização para desconstruir a hierarquia das leis nos ordenamentos jurídicos tradicionais, como os Estados nacionais. Ao fazê-lo, comprovou que nem mesmo esses ordenamentos jurídicos gozam de unidade plena. Quanto à questão da coerência, temos que Lessig enfrentou apropriadamente o tema ao propor uma espécie de tradutor. A questão da completude, por sua vez, já foi veementemente criticada por ampla doutrina, que infelizmente não pudemos citar aqui. Assim, concluímos que essas características elencadas por Bobbio para o ordenamento jurídico não são exigidas como conditio sine quod non para caracterizá-los, sob pena de não conseguirmos encontrar, tanto nos dias atuais como no passado, sequer um ordenamento jurídico por excelência.

Conforme mencionamos anteriormente, lamentamos o fato de Lessig não ter se dedicado a explicar a legitimidade das instituições criadoras do código para que ele se constitua norma fundamental, ou seja, seja considerado Constituição e assim ganhe a natureza de lei. Se compararmos a doutrina de Lessig à de Teubner, veremos que essa última está bem melhor fundamentada. Ao nosso ver, isso prejudicou a aceitação da assertiva Código é Lei, apesar de todo o respaldo que Lessig apresentou sob forma de observação do fenômeno social. Entretanto, não afastamos completamente a hipótese. Preferimos, antes, esperar os desdobramentos naturais dessa teoria, ainda tão incipiente.


Referências Bibliográficas

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